PERCURSO DE DESAPARECIDOS TEVE BILHETE E BUSCA POR MORADOR PARA FALAR SOBRE MANEJO DO PIRARUCU

 

Foto: Pedro Ladeira

Manoel Vitor Sabino da Costa, o Churrasco, guarda em uma bolsa um bilhete deixado pelo indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio) e colaborador da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari).

No bilhete, estão anotados o nome "Bruno" e um número de celular. Foi deixado pelo próprio indigenista, no último encontro que se tem notícia antes de seu desaparecimento sem rastros há uma semana, no domingo 5 de junho. Com o indigenista estava o jornalista britânico Dom Phillips, também desaparecido.

Pereira e Phillips visitaram a casa de Churrasco, 59, na comunidade São Rafael, na margem do Rio Itaquaí, às 7h de domingo. Não encontraram o pescador em casa, mas sua mulher, Alzenira do Nascimento Gomes, 56.

"Quando o Churrasco vai 'descer'?", perguntou Pereira, segundo Alzenira.

Ele queria saber quando o pescador iria para Atalaia do Norte (AM), cidade na região da tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia. Trata-se do município mais próximo da terra indígena Vale do Javari.

"Me dê uma caneta e um papel que vou deixar meu número para o Churrasco me ligar quando ele estiver em Atalaia", pediu o indigenista. Escrito o bilhete, ele e Phillips seguiram o trajeto rumo a Atalaia do Norte. Desapareceram pouco tempo depois, sem nunca chegar à cidade.

"Eu não sei dizer por que eles estão desaparecidos, e se alguém fez alguma coisa com eles", disse Churrasco à Folha na tarde do sábado (11), dentro de sua casa de palafitas na margem do rio que passa próximo à terra indígena.

"Eu não tinha nada contra ele [Bruno Pereira]. Ele nem parava nas comunidades. Ele veio aqui só uma vez, em 2014, ainda quando trabalhava na Funai."

Churrasco já foi ouvido como testemunha por equipes da Polícia Civil, da Polícia Militar e da Polícia Federal. No momento em que a reportagem o encontrou em sua comunidade, policiais militares fortemente armados faziam uma ronda na vila, onde vivem cerca de 20 famílias. Era apenas uma "visita informal", segundo os policiais.

Churrasco é tio de Amarildo Oliveira, o Pelado, preso por suspeita de participação no desaparecimento de Pereira e Phillips. Churrasco vive na São Rafael. Pelado, na comunidade vizinha (São Gabriel), também pequena e habitada por pescadores e pequenos agricultores.

"Ele mora lá, eu moro aqui. O que posso dizer é sobre o que eu fiz", disse Churrasco.

A reportagem percorreu no sábado o trecho do rio Itaquaí navegado por Pereira e Phillips, de Atalaia do Norte até o lago do Jaburu, onde há uma casa que serve de base ao projeto de vigilância indígena mantido pela Univaja. A entidade representa indígenas de sete etnias e defende os direitos de povos isolados que estão no território demarcado. Todo o trecho está fora da terra indígena.

O desaparecimento alterou a rotina do rio, que agora conta com a presença constante de embarcações da Polícia Militar e da PF. Há movimentações esporádicas de barcos do Exército, e uma maior presença de embarcações da Marinha.

Antes, as canoas presentes eram praticamente as dos indígenas, que seguem trafegando em embarcações precárias. Os motores de baixa potência transformam as viagens a Atalaia do Norte em jornadas de até 15 dias, rio abaixo e rio acima.

No rio Itaquaí, as comunidades se enfileiram separadas por uma densa mata. A Cachoeira, onde Pereira e Phillips teriam sido vistos pela última vez, é a segunda vila partindo de Atalaia do Norte. A São Gabriel, onde mora Pelado, é a terceira. E a São Rafael, de Churrasco, a quarta.

No caminho estão as embarcações da Univaja usadas para as buscas por vestígios da dupla. Trabalham nessas buscas 12 indígenas, de quatro etnias, que vivem dentro do território demarcado. Uma outra base de apoio dessas embarcações é a casa usada pela associação no lago do Jaburu, já bem próxima da base de fiscalização da Funai, a porta de entrada para a terra indígena.

Num barco potente, o percurso de subida dura cerca de duas horas. Pereira e Phillips usavam um motor de 40 HP, o que pode duplicar o tempo gasto. A descida rumo a Atalaia do Norte, que é o que eles faziam quando desapareceram, é mais rápida.

Na comunidade São Rafael, a visita ocorreu sem agenda prévia, segundo Churrasco.

"Ele veio marcar uma reunião. Disse que queria ajudar sobre a questão do manejo", disse o pescador, em relação ao manejo do pirarucu, cuja pesca depende de autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis).

A pesca ilegal na região, principalmente de pirarucu dentro da terra indígena, é uma realidade, inclusive com relatos de violência e conflitos. A prática está no horizonte das investigações sobre o que pode ter motivado o desaparecimento de Pereira e Phillips.

Newsletter Notícias do dia Receba diariamente de manhã no seu email as principais notícias publicadas na Folha; aberta para não assinantes. *** Segundo Churrasco, a pesca de pirarucu ocorre no rio. "Se pesca é porque precisa. É um risco de vida, mas ninguém ajuda nada aqui. Aqui nós somos esquecidos", disse.

Lagos na região das comunidades também são usados para a pesca. Churrasco afirma que ainda planta macaxeira, milho, feijão e melancia. Farinha e banana são outras fontes de renda. Nos lagos, o pirarucu só é pescado quando o Ibama libera, diz o pescador.

Os relatos de pesca ilegal incluem o tracajá, bastante apreciado pelos colombianos. A Colômbia está colada à região, o que alimenta o comércio ilegal dessa espécie de cágado.

Investigações apontam ainda forte influência do narcotráfico na região. Os pescadores das comunidades do Itaquaí negam esse tipo de influência e ação. Dizem que a prática estaria restrita ao rio Javari. O Itaquaí é afluente desse rio.

Nascido nas "cabeceiras do Itaquaí", Churrasco está desde os dez anos de idade no mesmo lugar. "Daqui só saio por morte", afirma.

Sobre as suspeitas apontadas para o sobrinho, Churrasco responde: "Eu me responsabilizo só pela minha comunidade. Aqui eu não tinha nenhum problema, até porque ele [Bruno Pereira] nem parava aqui."

Não houve comunicação com o sobrinho no dia do desaparecimento, de acordo com o pescador. A comunidade dispõe de um telefone rural.

Churrasco disse não saber o que ocorreu com Pereira e Phillips. Às 18h daquele domingo, o que ele viu foi uma canoa com luzes piscando em frente à comunidade. Era a polícia, que passou a frequentar a vila rotineiramente desde então.

"Eu só sei que estão desaparecidos. Não sei o que ocorreu", conclui.


Fonte: Folha de S.Paulo

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